Saturday, September 28, 2019

Da decadência

Uma coisa  é fazer a primeira consulta de alguém que está partido ou  demenciado, outra é conhecer uma pessoa activa, com 50 e tal anos, acompanhá-la ao longo de vinte anos e agora assistir à ruína física e mental.
Não vejam chest-tumping, mas a derrota  é-me familiar. Ainda assim, a situação descrita faz-me fechar o dia na clínica   reduzido à insignificância.

Quando a pessoa que conheci nos seus 50 e tal era alegre, energética e vivaça, a coisa  piora. A relação terapêutica  permite silêncios e cumplicidades que evocam o não-dito. Ela sabe como era, sabe como eu sei que ela era. As nossas conversas de dezenas de anos resumem-se agora a uma cáfila de lugares-comuns: o pior que me sai da boca é só chega a velho quem não morreu novo debaixo de um camião.
Não poder  lavar a roupa, não saber que dia é hoje, ter dores em osssos cuja existência se desconhecia, passar as tardes sentado a mirar um olival abandonado, não conseguir ler um jornal.
O vértice da derrota é o internamento num lar de velhos. Na melhor das hipóteses, a pessoa já nem percebe o que lhe aconteceu.

O velho Schopenhauer tinha razão: a vida é uma longa história de sofrimento. Que  nos vai enganando com doçuras e travessuras.


Sunday, September 22, 2019

O Passos é o Nené

A tendência tem quatro anos e é uma boa tendência:

- Então e este SNS de rastos?
- Olha que chamo o Passos e ficas na maca no corredor  dois dias em vez de um...

- Uma vergonha o saque fiscal indirecto!
- Chamo o Passos e até as pulgas do teu Bobi passam a pagar...

- Os professores ganham mal.
- Ponho o Passos a reitor e vais ver como elas te mordem.

- O mar está cheio de plástico!
- Vem o Passos e e deixa de haver peixe no mar, só preservativos.

- O Raul de Tomás é uma vigarice.
- Contrato o Passos e passas a jogar com nove...

Friday, September 20, 2019

Ataque à liberdade

 
STAATSPERSONLICHKEIT: Mal traduzido, "guerra de aniquilação contra a ideia de Estado enquanto pessoa jurídica". Expressão utilizada em 1902,  por Otto van Gierke ,  que Reinhard Holm, constitucionalista e membro da Jungdeutscher Orden  (Ordem Dos Jovens Alemães), recuperou  em 1933.  
Holm teorizou bastante  sobre a oposição entre a   democracia burguesa-constitucional e a verdadeira democracia  Alemã. A ideia era enterrar o liberalismo e o individualismo e fazer ascender a ideia de comunidade e de comunidade-nacional: "A pedra angular  da lei constitucional já não é o Estado enquanto pessoa de direito , mas  mas a comunidade nacional".
É repetitivo. No comunismo, no islamismo integrista, no nazismo: a comunidade acima de tudo.  O  que pode ser novo é uma leitura diferente : até que ponto , na velha democracia constitucional-burguesa, não vamos assistindo   ao afloramento de alguns ideais comunitários, expressos por uma minoria, em detrimento da liberdade individual de escolha?
 
A justificação para este  enfraquecimento é com frequência um bem maior, um imperativo categórico que uma qualquer pequena comunidade decreta  total em nome da comunidade maior. Várias bandeiras são acenadas, formando públicos controlados por campanhas mediáticas apoiadas em vinculações políticas. O caso Trudeau é exemplar:  as identificações são automáticas  e introduzem compulsões ao exercício de um poder de desqualificar ( como aplica Silvina Lopes ao caso da arte em que tudo-é-possível-tudo-se equivale).

Já não nos é mostrado nada, dão-nos  uns óculos graduados pelo sectarismo.





Tuesday, September 17, 2019

A arte da oportunidade: A. Costa e muito bem.

Usa-se no futebol, na descrição dos debates políticos, em todo o lado em que acontece o que devia acontecer. Dioníso (de Helicarnasso) discordava. Ninguém conseguiu  definir a arte da oportunidade, nem mesmo Górgias de Leontinos, que terá sido o primeiro a escrever sobre o assunto. Traduzindo em passe vite a ideia de Dionísio:  dependendo a arte do kairos  de uma situação determinada, julgada pelos olhos de quem a vê e ocorrendo num instante preciso, que, por sua vez,  é o produto de momentos anteriores e  coevos, é impossível definir a arte.
A altura certa para dizer a verdade, o momento  benigno para abandonarmos, o segundo preciso em que desistimos. Arrisco contrariar Dioníso ( espero que no instante certo): domina a arte da oportunidade quem duvida do futuro.
Vem isto a propósito de outra ideia feita: a acusação de oportunismo aos políticos. António Costa recebe bastas vezes a chibatada. Agora vejamos : um político que não domina a arte da oportunidade é um Raul de Tomás, ou seja, gasta muito, promete tudo e nunca está no sítio certo.
Temos na nossas representações psico-linguísticas outros equívocos: fulana é uma manipuladora. Quando em terapia alguém se queixa de ser assim apodada costumo sossegar a irritação. Explico que é um elogio, que saber manipular, portanto, dispor as coisas, templar, escolher o instante, é uma qualidade preciosa. Os tolos fazem ao calhas.

Costa é oportunista e manipulador? Claro, não é tolo. Bertoldos são os que não aprendem a contrariá-lo, os deslumbrados  que não duvidam do futuro.

Saturday, September 14, 2019

Doga, dog dancing com o PAN


On the other hand, rising connectivities between pet animals (animate and inanimate) and humans are happening in the context of eroding human-human connectivities, as evidenced in the dissolution of social welfare programs, affordable housing, and living wages, all of which are producing a widening gap between the rich and poorand are induced largely by neoliberal imperatives. Given the many diverse circuits of pet animal productivitiesfrom breeders to corporate sponsorships and investments to widespread ‘organic’ community organizing to egghead interestsit is unsurprising that pet-animal DAL is today so popular, salient, and intense. ( aqui)


A flecha  é, como sempre na inspiração marxista, demasiado centrada na questão económica e de classe, mas não fica muito longe  do alvo. Já lá vamos, mas para já examine-se a conexão neoliberalismo - pet mania.
A ideia é a indústria pet-mania como um subproduto da alienação social. Assim  como o futebol e a religião eram o ópio do povo. Interessa-me mais examinar o discurso de organizações que a autora crisma de orgânicas ( pobre Gramsci... se soubesse como seu conceito é tratado abaixo  de ...cão) ou até políticas como o nosso PAN.
Nos incêndios em que morreram 116 pessoas e milhares de animais e plantas não vimos  uma alma do PAN, uma iniciativa do PAN, nada, népias. Poderão estranhar se forem distraídos pela sigla Pessoas, Animais e Natureza. Se forem atentos compreendem que animais e natureza está lá como penduricalho: os únicos animais que contam são os humanos e as suas necessidades. Uma vaca que só existe para dar leite é tão importante para o PAN como uma pulga para um cão.
O neoliberalismo trazido pela autora do artigo só se compreende à luz do velho axioma: quando já temos tudo assegurado, quando  não conseguimos tolerar a frustração, viramo-nos para  a contínua satisfação das nossas necessidades secundárias. Uma comandita de gente resolveu projectar nos animais as suas neuroses. Podia ser pior, podia ser nos humanos.

 O que nos leva ao pequeno desvio da flecha. A autora entende que o narcisismo da pet mania  só existe como consequência do consumismo desenfreado. Talvez lhe escape que o mesmo consumismo produz relações com os animais exclusivamente  baseadas no garfo e faca ( os famosos hamburgeres ou a especulação com o atum por ex).A infelicidade  humana encontra sempre uma maneira de se exprimir. 
Já a reacção de superioridade da pet mania não tem nada de especial. Se entendem que os que tratam os animais apenas como animais são atrofiados ( stunted), apenas cumprem o mandamento de qualquer seita, política ou religiosa: se não és como eu tens de ser reeducado:


 Within the gamut of most economically powerful nations, the U.S. alone has the greatest percentage of its population in prison (most prisoners being poor andpersons of color), the highest crime rates, the most gun-related deaths, the lowest literacy rate, the highest levels of racial segregation, and the highest levels of infant mortality among the poor. At the same time, it is in the vangard of pet-care and commodity-pet-love. It has commodified pet-love into all walks of U.S. life such that humans who live without pets or who treat their pets as a species apart are seen as anomalous and somehow emotionally, psychologically, or morally stunted.

Wednesday, September 11, 2019

O racismo bom - a benefício de inventário :


Ora bem:


Pois será, mas não foi e é pena porque poderíamos ter percebido o que é o racismo bom.
No antigo regime gabavam-se da diferença para o apartheid e para os ingleses. Era a época do lusotropicalismo e renegava-se o racismo: apenas  se assumia o paternalismo diante do negro infantil e cheio de potencialidades.
Esta coisa da igualdade racial não se prega, faz-se:


Os media são muito amigos  da luta contra o racismo e a exclusão, das quotas raciais etc.: o Público já teve algum director de informação negro? E o DN, a SIC, a RTP a TVi? Não. Que estranho. Não empregam negros? Se sim, só os empregam para estafetas?

Mais estranho ainda: até à data, o único deputado negro na AR foi este, do CDS. Pergunta óbvia: o Bloco, nos seus 20 anos de existência, nunca conseguiu encontrar um cidadão  negro para  a nobre função de deputado? Já o PCP é ainda mais estranho: tem a câmara do Seixal, onde existe , por ex, o bairro da Jamaica, desde o 25 de Abril, mas digam-me lá: alguma vez conheceram um presidente  negro ao PCP? E esta lista tão branca? É  racismo do  de lei ou, por incrivel coincidencia cósmica, não existe um único  negro no Seixal   com capacidade política?

Ora bem de novo. Se os cavaleiros do anti-racismo se portam desta maneira, mais uma incómoda pergunta tem de ser feita: em nome de quem, e com que autoridade moral ou política defendem eles as vítimas do racismo? 
 Depois do massacre da UPA, em Angola, em 1961, o regime tentou a integração nos quadros administrativos. Os negros locais eram os Mandiocas, os rapazes da metrópole eram os Doutores. Sem censos também.

Sunday, September 8, 2019

Os caminhos do bosque da direita portuguesa

A única coisa em que existe direita em Portugal é nos costumes. Fora deles, não distinguimos um empresário  reformado  de Cabanelas de uma jovem terapeuta reiki eleitora do PS. Nenhum deseja o excruciante modelo bolivariano, nenhum suspira pelo eterno retorno das conversas em família.
A AD de Sá Carneiro explicou-se bem: toda  a acção provoca uma reacção e o país cansou-se do Conselho da Revolução. As  duas maiorias absolutas consecutivas  de Cavaco foram tão de direita como eu sou do misterioso Sporting: jorravam fundos comunitários, por isso ande eu contente, ria-se a gente. O governo de Passos foi o aplicador de um programa de resgate pedido por Sócrates: só com metanfetaminas  interrogamos aqui qualquer maioria , sociológica  ou com creme, de direita.

 Se, como José Gil dizia, Salazar transformou a existência em trauma, o PREC prolongou a catarse. Com a modernização básica  sobrou um funcionalismo público pletórico  e mal pago, mas pago. A economia paralela, que todos conhecemos,  funcionou como o outro pulmão.  A coisa foi andando aos tortolos até novo trauma, o da troika. Agora somos as Bahamas, os turistas asseguram a existência, o saque fiscal  aceita-se  como uma exodontia inevitável, o resto vai esperando novo tufão tropical. Ninguém troca o certo pelo incerto, ou seja pelas reformas  da direita.

Pode haver espaço? Ainda assim pode haver espaço?Talvez, se  a direita compreender o país.  
Os velhos e os pobres das serranias não valem votos, por isso os meninos urbano-liberais nem os conhecem. A avó tinha lá uma casita, um recuerdo de uns maranhos papados à lareira e é um pau.  As novas configurações sindicais são agressivas? Nem pensar em misturarem-se com gente suada e rude. Os médicos e os enfermeiros continuam a emigrar? Não temos tempo para eles. 


Ainda por cima, é nos costumes que a direita continua coesa e sólida como uma rocha à beira mar que todos os anos encolhe. Se os jacobinos  definem o mundo a partir de uma cave na rua de St. Jacobs, os marialvas imaginam-no como uma donzela permanentemente ameçada pelos Sex Pistols nus e drogados. Um urinol tramsgénero incomoda-os muito mais do que a anomia abjecta diante dos maiores ataques à organização familiar: o extermínio sistemático  de mulheres, mães e avós e a total desprotecção  das crianças. Interessa mais a composição do conselho superior  do MP.
A ecologia, uma bandeira natural na representação política conservadora, por motivos evidentes, está guardada na casa do corneteiro, ficando à disposição das festarolas  anti-lítio. A defesa ecológica é muito mais do que salvar os estorninhos: é uma parte  importante de um discurso moderador da voragem consumista e consequente decomposição social.

Não se vislumbram grandes mudanças. A direita está como a nêspera,  do Mário-Henrique Leiria, calada e quieta a ver o que acontece. Virá outro resgate? Talvez, mas depois também vem  a velha e zás, come-a.








Friday, September 6, 2019

A culpa do homem branco

Aplicada aos efeitos da expansão ( que os tolos  chamam de Descobrimentos) a partir de Quatrocentos, é imensa sem dúvida. Tão imensa como as anteriores - a imperialização inca e a expansão islâmica . Todos projectos de exploração económica , conversão religiosa e uniformização cultural. Não estamos habituados a falar dos incas ou dos maometanos como colonizadores? É natural. Veja-se este pedaço de cultura popular actual:

Islam came to root along the East African coast some time in the 8th century, as part of a continuing dialogue between the people on the East coast and traders from the Persian Gulf and Oman. Like early Christianity, Islam was monotheistic, that is, Muslims worship only one God.
Islam was a modernising influence, imposing a consistent order among different societies, strengthening powers of government and breaking down ethnic loyalties.
Unlike Christianity, Islam tolerated traditional values, allowing a man to have more than one wife. For many, this made conversion to Islam easier and less upsetting than conversion to Christianity.

E divertidíssimo. O diálogo constante, o esmagar das etnias como influência modernizadora e a superioridade  moral de permitir  haréns, sendo que sempre de um macho com muitas mulheres e nunca o contrário. Curioso, não  consta que esta afirmação tenha levado ao boicote da BBC.

As fonte islâmicas, agora sobre a conquista da Ibéria ,  assumem a operação militar mas com nuances  também divertidas. A Iberia estava  ora sem lei ora subjugada pelos Godos, que até perseguiam judeus, e por isso os seguidores de Maomé foram libertá-la.

 But their authority was not well established in the land at first, because of the religious conflicts that occurred between them and the original people, and because of the disputes that occurred among their rulers. Hence throughout the sixth century the land was subjected to civil wars and the chaos and problems that resulted from them, until the time of the last Visigoth ruler, whose name was Roderic (in Arabic, Ludhreeq). What is clear and indisputable is that the man felt that he was not fully in control and all his life he feared an attack from his many enemies. These enemies were not only the sons of Wittiza, whose kingdom Roderic had usurped, rather they included most of the Iberian, Roman and Jewish people, i.e., most of the people of the land which the Goths had invaded .

Enquanto escrevo, a China continua a dedicar-se ao extermínio  de muçulmanos. E por falar em culpa, sabem que mais?  Os muçulmanos  de outras partes não se importam :Aqui e no Washington Post também  têm um artigo ( link para assinantes, procurem). E procurem também dezenas de manifestações apaixonadas altermundialistas  e humanistas em Londres, Lisboa  ou Nova Iorque  contra os chineses. Salvo uma única, em Nova Iorque, só encontramos as feitas por uigures.
O homem branco continua cheio de culpa, da colonização ou da ideologia.


Thursday, September 5, 2019

A crise da direita




Gulbenkian dizia que só tinha três amigos: sono, sol e trabalho. A esquerda portuguesa só precisa  de um: os media. Quase quatro anos de geringonça e o PCP é claro: este governo não é de esquerda. O Bloco  oficioso segue  na peugada: o governo faz a política de Passos Coelho, o oficial remata em com força . Ora, quem está em crise nos editoriais de análise ? A direita...

É evidente que se formos pelas sondagens o mantra é correcto: o CDS continua anão e o PSD para lá caminha. Subsiste  uma nímia dificuldade. O CDS sempre foi irrelevante, e  muito pantomineiro, e este PSD não é de direita nem de esquerda, é um estelífero vazio se exceptuarmos a agenda contra  o MP delineada por  Elina Fraga e Mónica Quintela.
O que  os editorais dos media silenciam é a desesquerdização do governo PS. Sempre que Bloco e PCP põem a cabeça de fora lá vem a crítica de extremismo ou prova de vida.

Esta ideia feita tem outros prolongamentos interessantes. Peguemos na memória de Sá Carneiro À época era um fascista, ápodo utilizado por muitos dos que ainda hoje estão na política. Outros que partiram, como Cunhal,  eram claros em 1994: Todos estes factores abalaram profundamente as esferas do poder, sucedendo-se no campo fascista as divisões e dissidências (Craveiro Lopes, Botelho Moniz, Humberto Delgado, Henrique Galvão, Sá Carneiro e outros). Freitas do Amaral  era o Seitas do Mal no extinto O Diário; já derrotar Cavaco era um imperativo para salvar a democracia.
 Estes prolongamentos servem apenas para apresentar  o pão com manteiga do combate político: tudo o que não seja a  herança (a civilizada) do PREC é fascismo. Assim, a única direita portuguesa, o tenebroso PSD de Passos, é fascista e pronto, não se fala mais disso. Matar a serpente no ovo.

Resulta deste modo que quatro anos de governo PS podem ser travestidos de esquerda, mesmo que, como vimos acima, mais não tenham sido do que o prolongamento da política de Passos. Dirão vocês que se assim fosse o governo não teria o apoio de Bloco, PCP e  da ala esquerda do PS. Depende. Todos sabemos os milagres que  consegue a criação de um papão malvado (e uns pós de liberalidade nos costumes aos quais a direita tradicional rosna surdo) . E não há melhor papão (o verdadeiro)  do que o agitar da perda de direitos  e regalias.

Agora, com um PSD entregue a amadores deslumbrados,  tudo parece correr sobre rodas. Como no tempo do cavaquismo, a força é o hegeliano critério de correcção.